Uma janela de madeira velho azul e vidros gastos pelo tempo, um, talvez dois séculos; um cadeirão confortável que ocupa, ao acaso e em silêncio, o espaço vazio contíguo; o som hipnótico de um relógio de parede testemunha de gerações; a segurança e o aconchego de uma casa de xisto habitada por sombras.
No horizonte as memórias. A escola, com arquitetura Estado Novo, onde se aprendeu a ler num rigor de compasso, a primeira namorada, o tal beijo, as coisas do coração que desperta, os trabalhos de verão, o mealheiro improvisado e aqueles ténis da loja de desporto que teimavam em ser calçados; a universidade, o amor, os projetos profissionais e tantos outros acontecimentos marcantes na história da alma de cada um. De repente, um violento acidente, marcas e sons de uma travagem brusca, peças que perdem formas e se espalham por metros de estrada num abraço de sangue que escorre direção contrária ao sentido da vida.
Uma viagem fadada a um passado de ternura quase esquecido, um surpreendente reencontro marcado pelo destino na hora certa de um abraço, no momento exato de um suave roçar de lábios.
Nós, da Editora Europa, entrevistamos o autor para saber um pouco mais sobre a escolha do tema do livro, assim como suas inspirações para escrevê-lo.
Confira a íntegra da entrevista com o autor português Gonçalo M. L. Ramos sobre o livro “A memória das recordações”.
Quando e como começaste a escrever?
Não há um momento exato a referir. Foi um processo lento e natural.
Uma pequena história: recordo-me que no antigo ciclo preparatório, o saudoso “ciclo”, os testes da disciplina de português terminavam sempre com uma composição, algumas livres, outras sujeitas a um tema. Das boas críticas relativas aos meus textos, houve um comentário que, ainda hoje, ressoa algures em mim; o professor escreveu, num vermelho diferente, Porque é que não continuou a história? A resposta que lhe dei, perdi-a no tempo, mas a pergunta ficou. Talvez tenha sido esse o momento em que realmente comecei a escrever, entre os dez e doze anos.
Como escolheste o tema do livro?
Poderia dizer que foi num acaso de ideias e pensamentos, mas prefiro acreditar que não fui eu a escolher o tema. Foi ele que, vindo de uma outra dimensão, não sei qual, esbarrou violentamente comigo e praticamente me obrigou a escrever as memórias de uma personagem fictícia que sou eu, mas que também habita nas pessoas que se cruzam connosco todos os dias. São recordações coletivas de uma existência comum.
Quais foram as inspirações para escreveres este livro?
A inspiração tem muito de divino, como o próprio respirar, razão pela qual não tenho a certeza de conseguir responder de forma clara e/ou lógica à pergunta que, talvez, seja muito mais complexa do que parece numa primeira leitura. Inspirei-me principalmente nas pessoas. Apesar de ser um romance, alguns dos textos que o compõem são reais. Aconteceram e, juntos, completam o puzzle que é o livro no seu todo.
Sobre que temas gostas de escrever?
Escrevo principalmente sobre a condição humana, sobre mortalidade e os seus entretantos. Continuo a considerar o isto de estar vivo fascinante.
Que mensagem quiseste deixar ao leitor com o livro?
Para ser sincero, a preocupação com o leitor foi crescendo a cada página, mas começou no zero. Queria contar a história, ou a história queria ser contada, tinha que ser escrita. A ideia de publicar aconteceu antes de o escrever. Parece estranho, mas assim foi. Simplesmente queria escrever, sem objetivos, sem rumo, no meu tempo e estilo. Aqui sou feliz e isso seria já o suficiente (reconheço o egoísmo da afirmação).
Não existe uma mensagem específica que queira transmitir. Que seja o leitor a interpretar e vivenciar o livro, que já não me pertence. Que é de todos vós.